Aldeia Itapuã - Iguape - Guarani
- Vitor Miranda
- 22 de nov. de 2018
- 12 min de leitura

(Cacique)
estive na aldeia Itapuã em Iguape e conversei com João Lira, vice diretor da Escola Aldeia Itapuã. seu nome em Guarani, Wera, quer dizer relâmpago.
Itapuã (em grafia arcaica Itapoan) é uma palavra de origem tupi-guarani que designa um tipo de arpão curto, com ponta metálica (originalmente de pedra – ita, nessa língua), que era utilizado para a pescaria de tartaruga e peixes grandes. a palavra significa Pedra que ronca – do tupi-guarani (ita– pedra, puã– Ronco).

(João Lira, ou Wera)
16 famílias ocupam o terreno da aldeia. na retomada, em 2001, chegou a primeira família que estava morando na Juréia (em tupi-guarani significa literalmente: "multidão de espinhos" e também um dos nomes indígenas da tartaruga, também grafado como jericuá, jurucuá e juruquá.). "retomada" porque os Guaranis já vivem na região a cerca de mil anos.

Vitor: a terra já era de vocês?
João: o pessoal da cidade falam que nunca viram índios antes 1998, mas só que nas memórias das pessoas, do guarani, essa ocupação é muito antiga. tanto é que essa região sempre foi ocupada e num certo período, não sei em qual governo, retiraram todas as comunidades aqui da região e levaram lá pra Pedro de Toledo onde era uma concentração, chamada aldeamento Alecrim. depois disso as mesmas pessoas que foram tiradas daqui a força, aos poucos foram retornando pra região que sempre foi ocupada. exclusivamente aqui foi a volta pra reafirmar. só que antes disso tem muitas histórias que a população não indígena não sabe e não entende, tanto é que a própria história de Iguape, se a gente ler a história do Bom Jesus de Iguape, por exemplo, eles citam que os dois índios acharam essa imagem na Juréia. então na própria história do não indígena cita a presença do indígena. só pra contextualizar um pouco a questão do indígena e não indígena que é um pouco distorcido, pois eles mesmos escrevem e depois falam ao contrário.
Vitor: tanto que os nomes Juréia e Iguape...
João: é tudo Guarani.
em todo o Vale do Ribeira, atualmente, existem 16 aldeias em diferentes municípios. cada aldeia tem seu nome específico e a sua escola. na escola, as crianças aprendem primeiro a cultura e o idioma guarani pra depois aprenderem, lá pelos 8 anos, a segunda língua: português. é importante para eles manterem sua cultura viva. um dos primeiros povos a terem contatos com europeus, o povo Guarani mantém seu idioma e sua cultura após mais de 500 anos. João cita a constituição para tocar nesse ponto: "pensando nessa realidade, a gente sempre vem reafirmando que a escola, como foi um direito conquistado na Constituição Federal de 88, que deixa bem claro que as diferenças tem de ser respeitadas e a gente vem trabalhando em cima disso dentro das aldeias pra que a gente reafirme que é necessário manter a cultura vida".

anteriormente a presença da escola nas aldeias, o lugar que nutria o papel de transmitir a cultura era a casa de reza onde os Pajés e os anciões da comunidade ensinavam as crianças.

Vitor: como é a religião de vocês?
João: eu, particularmente, depois de ter seguido algumas religiões de fora pra entender um pouco: a evangélica, a espírita, a umbanda. cheguei a conclusão que a nossa religião prega as mesmas coisas, o respeito e o amor ao próximo, que é fundamental. em outras religiões vi que tem o mesmo propósito, mas cada religião tem uma linha diferente, tem sua filosofia de pensar as coisas. depois de ter analisado praticando um pouco, porque a partir do momento que você se encontra dentro você tem que se entregar pra sentir. concluí que a nossa religião é a única que não tá escrita. tá escrita na mente dos que praticam, está no coração das pessoas, então é uma coisa mais significativa. nas outras há um direcionamento, um livro que explica. na nossa religião as palavras estão dentro das pessoas. isso nos torna mais fortes no sentido de representar essa religião. a gente tem os Deuses pra respeitar o meio ambiente. a gente tem o Deus pelos animais, cada ser tem um Deus representante aqui na Terra que a gente vive que chamamos de mundo imperfeito. a água tem seus Deuses, a pedra, as árvores tem o seu espírito que a gente acredita muito e com isso a gente tem preservado bastante o meio ambiente que a gente vive. isso tem a ver com a nossa religião. e tem o Deus supremo que criou esses seres aqui na Terra e tem a história que a gente acredita bastante que é a terra sem mal, o mundo perfeito, que a gente chama de centro da Terra e que vem do Paraguai pra cá, descendo o litoral na busca de atravessar esse mar. a gente acredita que passado esse mar a gente consegue chegar num mundo perfeito, onde está Deus. aqui na Terra temos a renuncia, os Pajés acreditam que renunciando tudo, renunciando toda a maldade do coração eles viam só o perfeito amor e aí eles curavam as pessoas e se tornavam um semi-Deus aqui na Terra com o poder da cura, de ver o futuro.
Vitor: sobre as águas, geralmente a gente pensa que os povos indígenas estão próximos de um rio, convivem com o rio. provavelmente essa situação de ter que mudar de território várias vezes acabou afastando vocês do rio. qual a relação de vocês com a água?
João: essa palavra, na nossa grafia a gente fala que "yy" é água. a água é pra nós o princípio de tudo. quando estava na faculdade teve um Guarani mais velho que falou sobre isso, essa questão dessa palavra, da origem de "yy". começa "yy", depois vem o solo, depois vem a árvore, então tudo está interligado, tudo é um clico de vida. quando as pessoas morrem os mais velhos falam aonde nascerão as próximas árvores. o ser humano, apesar de toda questão, está num ciclo, só, por isso que a palavra "yy" pra nós é muito forte porque é o início de tudo, é da onde começa a vida, por isso que na retomada os lugares que sempre foram habitados é na beira de um rio, onde tem uma boa fonte de água. o pessoal mais velho tem uma visão muito além do que a gente pensa. eles se concentram no seu mundo, na sua religião, na sua casa de reza e pedem uma visão e aí eles falam que Deus dá uma visão pra ele sobre o lugar que é bom de morar, eles sentem isso. por isso que eles vão a algum lugar desconhecido, que alguém já tenha morado ou passado. é uma forma de comunicação. aí eles vão longe e quando chegam é um lugar que ele já conhece. um lugar que foi iluminado. é um pouco incompreensível pra quem não vive essa cultura.
Vitor: como são os rituais? chá, vacina do sapo?
João: o que as pessoas conhecem um pouco, que é próximo, é timbó. esses dias estava conversando com Niltinho e ele conhece. tem duas pré-finalidades, tanto pra pescar, amassa e depois joga no rio e os peixes começam a transbordar. outra finalidade, eles falam que pode ser usado como medicinal também, pra lavar o corpo, cabelo. pode ser usado pra verminose, mas tem que ser uma dose certa. então esses detentores entendem a dosagem de erva que tem que ser usada. tem um conhecimento que as pessoas sabem e esse conhecimento é muito difícil de ser transferido. não é qualquer um que pode. a pessoa tem quer ser escolhida ou tem que ter o perfil pra praticar aquilo, por isso que esse conhecimento pra nós é muito importante e ao mesmo tempo tem que seguir todas as suas regras. se a gente praticar de qualquer jeito esse conhecimento acaba não dando efeito, porque tem um ritual certo pra todas as coisas que é preparado. teve uma história de uma pessoa que estava com um problema de hemorróida que a gente sabe que é um problema muito complicado e uma cirurgia é um risco, então essa senhora não indígena foi curada com uma simples erva do mato e pra ela foi quase um milagre. pra senhora indígena que preparou foi algo normal, ela fez pela humanidade, por ser a pessoa. esse tipo de conhecimento que a pessoa tem é muito significante, então não é algo que tem que ser comercializado. a gente sabe que todo conhecimento pra ajudar o próximo não é pra fim de comércio, por isso que muito conhecimento fica restrito a pessoa. a maneira de pensar do Guarani sempre foi assim. muitas coisas que a gente sabe que tem cura, mas eles preferem cuidar desse conhecimento pra que não seja mais uma industria. então eles falam que muito desses conhecimentos aparecem em sonhos, por isso que vem junto com a fé e a preparação tem que ter todo um ritual pra surtir efeito.
Vitor: lá em São Paulo as pessoas estão utilizando muito rapé, até na balada. o que é o rapé?
João: é uma mistura de ervas. é um pó, eles preparam um pó e cheiram.
Vitor: é mais do norte, né?
João: é mais pra lá. tem também o chá...
Vitor: o ayahuasca.
João: isso. nunca tive curiosidade de experimentar. mas isso tem a ver muito com a espiritualidade da pessoa também. acho que quando eles começam a cheirar esse pó eles entram num mundo da natureza, eles falam, começam a conversar com aranha, com um monte de coisa e você consegue ouvir as coisas, então é um mundo que é meio estranho pra mim, mas cada cultura tem sua maneira. a gente respeita bastante, mas no Guarani não tem essa cultura de alucinógeno, nenhum tipo, é muito na fé, muito pura, não pode ser uma imaginação, tem que ser real.
a cultura deles é comunitária e as crianças são criadas pela comunidade. é muito importante que elas, aos sete anos, já estejam aptas a entender o que é certo e errado, criar responsabilidades. "se você ver uma criança na cidade pegar um objeto cortante os pais ficam desesperados, na nossa realidade é diferente, a gente sabe que uma criança tem a consciência de manusear aquilo".

Vitor: na sociedade que eu vivo há várias lutas, inclusive a luta das mulheres, o feminismo. há uma mudança social relativa a mulher dentro da aldeia?
João: a questão desse movimento, eu particularmente, sou muito favorável de que mulheres indígenas, seja ela ou não, têm que ter o seu espaço. na minha consciência sou a favor disso e eu sempre, pelo menos aqui na escola, na minha família, sempre incentivo bastante a ideia de que as mulheres tem que ter o seu espaço, tem que ter um lugar pra elas dialogarem, reivindicar suas coisas. na cultura se praticava muito o machismo, talvez, né? as mulheres indígenas achavam muito cultural ser submissa, mas por outro lado as mulheres indígenas são bem respeitadas dentro do mundo dela, diferente de outras sociedades. deixo isso muito claro. mas culturalmente pensavam que tinha que ser submissa, só que a partir do momento da chegada da escola e que a gente traz o conhecimento de fora a gente tem que se atualizar, as pessoas tem que pensar um pouco diferente. tanto é, que sempre falo, aqui na escola tem que ser um pouco paritário. é bom a presença de professora, é bom a presença de mulheres pra dar aquela a visão menos machista. pelo menos da maneira que a gente organiza as coisas cada um tem o direito de ter o seu espaço. inclusive tem o movimento das mulheres indígenas que está forte também. mês passado, quando estava em campanha, fui lá em Parelheiros, tinha um encontro de mulheres do estado todo. achei muito interessante as mulheres estarem fazendo uma reunião fechada. nenhum homem podia entrar. achei muito bom. o mais interessante ainda nesses cinco dias de encontro é que as cozinheiras tinham que participar também e os homens começavam a preparar o alimento pra elas. isso é uma evolução. por isso eu apoio esse movimento.

Vitor: e a questão política?
João: então, a questão da terra é muito importante pra gente. essa área aqui está em processo de demarcação. foi reconhecido ano passado. uma das coisas que a gente sofre bastante é que enquanto a terra não é demarcada a gente é limitado, principalmente, pra abrir uma roça. se a gente abrir uma roça é processado por crime ambiental porque a terra não tá demarcada. daí ficamos limitados para práticas tradicionais de roça e não podemos roçar, plantar. tendo a terra demarcada a gente vai poder reivindicar o saneamento básico. aqui na aldeia não tem banheiro, só na escola. nem água encanada a gente tem, a gente puxa das nascentes. o governo não pode fazer investimento onde a terra não é demarcada. essa escola foi o resultado de uma luta, muita luta mesmo pra gente garantir um espaço pras crianças estudarem e brincarem. essa é a importância de termos uma terra pra praticar a cultura, os milhos Guarani que é sagrado pra nós e isso a gente não pode deixar perder. cada ano a gente planta um pouquinho pra ter a continuidade pra garantir que não desapareça. toda essa questão envolve a terra. a gente precisa ter coisas pra garantir a sobrevivência quanto pessoa. o ano passado foi reconhecido o limite, aí teve o levantamento fundiário, o estudo pra saber quantos roceiros que tinha, quantos moradores que estão na área pretendida e aí o próximo passo é uma portaria pro uso definitivo de terra. isso garantiria um pouco mais a criação de uso exclusivo já. o último passo seria homologar. mas tá um pouco complicado.
Vitor: como estão se sentindo com a eleição do novo presidente?
João: analisando o que vem acontecendo até agora a gente sabe que tem a fundação do índio que é uma pasta do ministério da justiça que cuida, exclusivamente, da demarcação de terra. a gente tem visto bastante que os ministros são indicados pelo presidente.
Vitor: Moro.
João: sim. o que a gente percebe bastante ainda, pelo menos até agora com toda essa fragilidade que vem acontecendo com a FUNAI, que vem cuidando um pouco da demarcação de terra, esse ano mesmo já foram muitos cortes que aconteceram no governo federal. então não sei o que vai acontecer no próximo ano porque é um risco que estou sentindo. nunca foi do interesse da bancada ruralista, dos grandes agropecuaristas que dominam o congresso, nunca foi interessante ter a FUNAI dentro da pasta do ministério da justiça. ano retrasado já teve uma discussão da PEC 215, que se for aprovada as próximas demarcações vão passar pelo congresso e teoricamente vai acabar com a FUNAI e os deputados vão aprovar as terras indígenas que serão demarcadas. analisando friamente, como a bancada ruralista é muito forte e sempre foi maioria, apesar do ano que vem ter um pouco de equilíbrio pelo que vi, mas a gente tá em risco. se esse projeto voltar a tona e for aprovado quer dizer que já não teremos as demarcações. tá nesse pé. e aí não tenho boas perspectivas sobre a conjuntura do ano que vem, não sei como vai ficar, talvez esteja pessimista demais, mas tenho quase certeza que não é boa coisa. é uma incerteza que a gente tem na questão indígena como os quilombolas que estão nesse mesmo pacote. tem muita coisa que me deixa apreensível, sem luz. tô vendo que a gente tá no fundo do poço mesmo. espero estar errado, mas a análise que faço é uma incerteza. estou pessimista com o novo presidente. historicamente analiso que a maioria dos torturadores, autoritaristas que entram, 99% do que eles falam, eles fazem. se a gente analisar o que aconteceu na história a gente tem esse olhar um pouco diferente, e quando esse novo presidente, fazendo a política dele, falando as coisas, pra mim que entendo um pouquinho sobre história, pensei "não. esse cara tá falando que vai fazer" e a maioria que apoia fala "não. são apenas palavras, ele não vai fazer" e a gente vê essa nova transição proposta por ele que o que ele falou ele tá fazendo e coisas piores podem acontecer. são coisas muito complicadas de entender. esperava uma reação um pouco diferente do povo brasileiro, mas é muito complicado e acredito bastante que pode ser possível que a gente caminha do jeito que tá e que muitas reformas vão acontecer. são coisas que não me deixa muito à vontade de pensar no futuro próximo. as minorias que já sofrem essa pressão e o ano que vem vão ter que resistir. nós seremos resistência. o povo indígena resistiu durante 518 anos apesar de todo massacre, toda tentativa de eliminação que vem acontecendo a gente conseguiu resistir e vamos continuar resistindo. esse é um pensamento que eu tenho. a esperança que tenho é que o povo indígena sempre lutou pra existir, pra sobreviver. então isso é forte pra gente.
Vitor: geralmente as pessoas tem seus ídolos de luta. aqui no Brasil os negros tem o Zumbi dos Palmares, tem o Tiradentes. pro povo Guarani existe essa figura?
João: sim. a gente tem uma figura, o Sepé Tiaraju, que foi uma resistência dos Sete Povos das Missões. ele sempre foi uma referência da luta pela resistência. é uma figura do povo indígena que lutou quando os portugueses queriam tirar os índios fora de seus territórios. eles lutaram com seus guerreiros. ele é nossa referência e a gente vai continuar a luta e a fé. o Pajé consegue uma proteção divina, eles contam uma história que na época da ditadura essa opressão era muito forte, eles faziam aldeamente, juntavam certos povos de uma determinada região e faziam uma aldeia grande onde eles impunham suas vontades. por exemplo, agora, esse presidente que diz "não vão integrar" a palavra dele representa a ditadura, representa o que o povo indígena passava. meu tio lembra um pouco dessa época, eles falam que eram escravos, falam que a aldeia era tomado pelo exército e tinha uma regra, todo mundo tinha que trabalhar, produção, como se fosse uma fazenda, grande produção em excesso. falam que era muito forçado e quem fosse rebelde eles torturavam mesmo. falavam que o próprio indígena tinha que cometer a violência contra seu irmão. se não fizesse ia passar por aquilo. é muito triste. tem uma passagem que nessa época muitas famílias que conseguiam fugir dessa concentração vinham pro litoral e a noite os pistoleiros vinham atrás pra eliminar todos. eu acredito que estamos voltando pra esse ponto de novo. muitas coisas que aconteceram a pouco tempo atrás. se realmente ele confirmar todas essas coisas que ele (Bolsonaro) falou a gente vai voltar um pouco pra trás. sei que muitas pessoas que defendem dizem que a ditadura nunca existiu, mas como? a história é escrita praqueles que dominam a escrita e o poder e isso é comum. o projeto do governo em si é isso. o que tenho observado bastante, enquanto educador, é que na educação básica o conteúdo que vem é proposital do governo e eles querem passar só o que eles querem e não a realidade que foi, que o povo passou, que sofreu. então isso dá uma maquiada na informação que vem junto daquilo e a tendência é não saber de nada mesmo. só entender aquilo que foi passado propositalmente o que interessa pra eles.

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