Rio Tietê ou Anhembi
- Vitor Miranda
- 6 de mar. de 2018
- 7 min de leitura
Tietê, em tupi guarani: água verdadeira

Outrora chamado de Anhembi, pelos índios. Segundo o Governador do Paraguai, D. Luis de Céspedes Xeria: "Ayembi quer dizer rio de unas animais" - aves que causavam espanto ao europeu. Em Caminho e Fronteiras, Sérgio Buarque de Holanda nos confirma que "Anhembi quer dizer rio das Anhumas ou das Anhimas", aves que desde o início do povoamento eram procuradas pelos caboclos, que buscavam nelas o remédio ou preservativo para toda sorte de males. Para Teodoro Sampaio, anhembi significaria perdiz, ave que existia em grande quantidade nos campos de Piratininga. Para Afonso de Freitas, significaria rio veado: viria de anham - correr -, e de angalma, espírito, gênio.
Em 1748, o nome Tietê foi pela primeira vez registrado cartograficamente, no Mapa D'Anville. Referia-se apenas ao trecho situado entre a nascente do rio e o salto de Itu.
Ainda naquele século, o nome Tietê foi associado, por José Gonçalves Fonseca, as aves conhecidas por tetés, semelhantes aos pintassilgos, que eram muito comuns nas margens. Mais tarde, Teodoro Sampaio levantou duas hipóteses: Tietê viria de tiê, a voz onomatopaica de uma família de aves das quais fazem parte os tié-piranga e o tié-juba; ou viria de junção de ty - águas, líquido, vapor -, e ete - verdadeiro -, significando rio bastante fundo, rio verdadeiro.
Em 1929, Plínio Ayrosa, em parecer para Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, contestaria essa hipótese, afirmando que o nome Tietê não era indígena, mas dado pelos portugueses, mesmo porque, nem pelo seu volume, nem pela comparação com outros cursos d'água, os índios seriam levados a atribuir-lhe o significado de rio grande.
Hoje, chamado de Rio Teimoso pelo aluno da Universidade de São Paulo: Caio Fabiano Lopes do Valle Souza. Sugerindo que, embora deteriorado, o curso d’água persiste em não querer morrer. Também por nascer em Salesópolis, na Serra do Mar, há 22km do oceano e adentrar o continente percorrendo 1100km até desaguar no Rio Paraná.
O Tietê funcionava como uma "estrada de penetração" para o Oeste. Bandeiras e Monções rumavam para a exploração de ouro e apresamento de índios.
Ainda no período colonial, o rio, por conta de seu solo rico e fértil, atraiu muitos aventureiros e pessoas afeitas às lavouras. Dessa forma o rio passou a abrigar as primeiras habitações em suas margens, formando, desse modo, o vilarejo de Pirapora do Curuçá, em que seu nome homenageia uma pedra que possuía uma cruz entalhada e se localizava no lado esquerdo do rio, onde os índios a nomearam de Curuçú-Guaçu (palavra que em tupí significa Cruz).
Em São Paulo, no início do século XX a população ainda fazia uso do rio para pesca, natação, lazer, navegação. A fauna do rio era abundante e enchia a barriga de muita gente com peixes como o bagre e a tabarana, assim como mexilhões, camarões de rio e caranguejos.
Macunaíma, o herói sem caráter do livro de Mario de Andrade, ainda pescava no rio. O trecho do livro publicado em 1928 relata:
"No outro dia falou pros manos que ia pescar peixões no igarapé Tietê. Maanape avisou:
– Não vá, herói, que você topa com a velha Ceiuci mulher do gigante. Te come, heim! – Não tem inferno pra quem já navegou no Cachoeira! que Macunaíma exclamou. E partiu. Nem bem lançou a linha de cima dum mutá que veio vindo a velha Ceiuci pescando de tarrafa. A caapora viu a sombra de Macunaíma refletida n’água jogou depressa a tarrafa e só pescou sombra. O herói nem não achou graça porque estava tremendo de mêdo, vai, pra agradecer falou assim: – Bom-dia, minha vó."
Mario de Andrade, um pouco antes de morrer em 1945, escreveu o poema "A meditação sobre o Tietê" onde ele flui em metáforas de corrupção, descaso, fruto da demagogia e do desgoverno. A morte das águas. O progresso em desarmonia com a natureza.
"Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio se escurece de novo,
Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbre um caminho de morte."
Em 1969 - cerca de 40 anos depois de Macunaíma, quase 25 depois do poema da meditação - João Carlos Marinho Silva publica "O Gênio do Crime". Livro infanto-juvenil que relata em determinado momento da trama três amigos acampando à beira do Tietê:
"Andavam pela beira do rio, entre o capim alto, e, fuçando, acharam uma praiazinha que ficava embaixo de um barranco, bem encaixada. O barranco era alto de três metros e avançava no rio em forma de U, não dando passagem por nenhum dos lados. Uma praiazinha embutida assim era o lugar melhor para acamparem sem perigo dos curiosos verem. E nem da outra margem podiam ver porque o pedaço de praia tinha capim de dois metros e Edmundo e Pituca foiçaram e capinaram o trecho justo que dava para a tendinha que ficou tapada pelo capim em redor. Acertaram tudo e foram jantar em cima do barranco; haviam trazido uma porção de apetrechos comprados por seu Tomé."
A arte imita a vida e nessas três obras literárias dá pra identificar o diferente relacionamento dos personagens com o rio.
No documentário "Entre Rios" que conta a história do crescimento da cidade de São Paulo o narrador diz: "a elite paulistana sonhava em construir uma cidade como as que viam em suas viagens pela Europa. E seus rios não se encaixavam nesse sonho. Não do jeito que era."
Retificação, afundamento e canalização dos rios. Expansão some com Anhangabaú e Tamanduateí. A Metropolé esbarra no Tietê.
A Professora Odete Seabra - no doc "Entre Rios" - diz que os rios paulistanos "são rios de planície, lentos, serpenteiam na superfície por onde escorrem. Formam meandros." e completa "de uma cheia pra outra até mudavam de lugar. E mudavam de lugar dentro de uma superfície que é a várzea de inundação periódica do rio."
As várzeas despertavam o interesse imobiliário e castigavam as pessoas mais pobres que moravam nessas áreas causando um transtorno político que alimentava o debate sob a canalização do rio.
Na Escola Politécnica houve um debate ideológico entre o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito - que projetou os canais de Santos e era presidente da comissão de melhoramentos do Rio Tietê em 1922 - e Prestes Maia. Saturnino propôs o resgate da orla pluvial urbana do primordial logradouro público da futura metrópole. Ele dizia que toda confluência de rios, aqui em São Paulo, teria que ser formado um lago para o coração-núcleo aquático de um cinturão de parque com bosques. Já, Prestes Maira, fez o plano de avenidas pra cidade.
Prestes Maia e Ulhôa Cintra eram técnicos que falavam o que os empreendedores queriam ouvir. Justificação do desenvolvimento através de um plano de avenidas radial concêntrico. Ele se baseou em cidades europeias como Moscou, Lion, Viena e Paris. Mas esqueceu de avisar que antes de fazer o sistema radial concêntrico de avenidas Viena já tinha o anel rodoviário e o anel hidroviário do Rio Novo Danúbio. Moscou e Paris também tinha anel hidroviário.
Bora vender carros! A peça chave do discurso de modernização.

O “Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo” foi publicado em 1930 pela editora Melhoramentos e orientou a atuação de dois prefeitos de São Paulo, Fabio Prado e o próprio Prestes Maia, no período entre 1934 e 1945. No plano haviam a construção das marginais Pinheiros e Tietê, entres outras grandes avenidas que escondem cursos d'água.
O Tietê foi retificado e as marginais foram construídas durante a década de 1950 e o Tietê foi perdendo o convívio com a população. Mas o trânsito continua até hoje assim como o dinheiro continua para quem se beneficia com a venda dos carros.
A urbanização às suas margens contribuiu e muito para a morte de suas águas. Ainda na década de 1940, período de intensa industrialização da economia brasileira, a Companhia Nitro-Química Brasileira foi instalada à margem esquerda do Tietê, na altura de São Miguel Paulista. Ela foi uma das primeiras fábricas a emitir volumes elevados de poluentes nas águas do Tietê, contribuindo para a sua degradação. Essa deterioração acabou estimulando um outro tipo de relação das pessoas com o rio, que passou a ser cada vez mais visto como um lugar de descarte de lixo do que um recurso natural importante para a cidade. Em 1960, Carolina Maria de Jesus, que morou numa favela no Canindé, às margens do Tietê, publicou o livro "Quarto de despejo":
"Ganhei bananas e mandiocas na quitanda da rua Guaporé. Quando eu voltava para a favela, na Avenida Cruzeiro do Sul 728 uma senhora pediu-me para eu ir jogar um cachorro morto dentro do Tietê que ela dava-me 5 cruzeiros. Deixei a Vera com a mulher e fui. O cachorro estava dentro de um saco. A mulher ficou observando os meus passos à paulistana. Quer dizer depressa. Quando voltei ela deu-me 6 cruzeiros. Quando recebi os 6 cruzeiros pensei: já dá para comprar um sabão."
Tietê, rio das anhumas, e também das perdizes dos veados, dos tetés dos tiés: qualquer que seja a origem do nome, todos nos remetem à fauna abundante que habitava suas margens e hoje já não habita mais.

Quando eu ainda era um adolescente de 15 anos. Viajando com meu amigo Erik Furlan. Joguei uma lata de Coca-Cola pela janela do carro na Marginal Tietê e fui repreendido pelo amigo. Me entrego aqui confessando de uma maneira simbólica este fato simbólico de um garoto ignorante jogando uma lata de Coca-Cola onde deveria haver um rio serpenteando.
Em 2018 decidi que iria fotografar rios. Convidei meus amigos Thiago Ortolani Djuruvic e Douglas Paulino para uma volta pela Marginal Tietê. Estacionamos o carro numa corporação do bombeiros no pé de uma ponte e fotografamos o rio lá de cima. Mas eu queria chegar mais perto. Hoje é tão difícil chegar perto do nosso Tietê, quanto mais meditar sobre ele. É preciso enfrentar carros a 90km. Sem passarela, atravessar a pé nem pensar. O jeito é acelerar a mais de 90km pra se distanciar dos carros que vem no retrovisor para conseguir jogar o carro nos pequenos acostamentos.

Descemos e fotografei o rio a poucos centímetros dele. Douglas Paulino fotografava o fotógrafo. O fato de estar ali pertinho dele me deixa sem palavras para descrever a sensação de estar ali. Fiquei em silêncio um tempo depois de sair perigosamente do acostamento e enfrentar a batalha de latas automotivas. E o meu silencio dizia:
O governo matou nossas águas e fazem de tudo pra nos manter longe do morto.

Fonte de pesquisa:
Memorial do Rio Tietê: http://www.maenatureza.org.br/memorial/paulista/anhuma.htm
Tietê, o rio teimoso de São Paulo: http://lemad.fflch.usp.br/node/9067
Entre Rios: https://www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc
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